No puteiro mais famoso da região, somente a luz do quarto dela, Felícia, varava noite após noite acesa.
Ela sempre levava seus homens até a porta,mas nem reparava os olhares mortificantes que espreitavam das portas das demais “irmãzinhas” como as chamavam dona Carlota, senhora da casa. Felícia somente recebia o próximo da fila. Eram tantos..A noite e o dia eram tão curtos e ela dormia das 11 da manhã às 3 da tarde, quando era hora de sua reza. Só atendia depois disso.Era quando se vestia de luxuriosas rendas, transparências e cetim.
Não se sabia ao certo de onde viera, nem quantas primaveras contava. Havia apostas na cidade e em toda região perto dali. Mas ninguém havia de vencer.Felícia só sorria ao ser perguntada. Só sorria. Ainda sorria quando as carolas e senhoras de respeito da cidade a xingaram e jogavam pedra, penas e água tordada.Foi o padre Zaqueu quem a defendeu e, levando-a a sacristia, entendeu que não precisava de defesa alguma. Ele a agradeceu.
Naquele lugarzinho perdido, marcava sempre 5 em ponto no relógio desbotado da parede do bordel, quando Felícia abria a porta de seu quarto ao primeiro homem da fila. Ela era colorida sempre das mesmas cores: um dia suas rendas eram brancas, no seguinte eram rubras,mas o dia em que todos mais suspiravam, era quando viam abrir a porta a mão com mangas de renda negra. Somente uma coisa nunca mudava: as pérolas. Elas sempre estavam lá. Um colar longo correndo entre os seios fartos até sua cintura onde – antes do fim – havia um nó perene. As pérolas sempre estavam lá.
O dia em que Felícia se vestia de rendas e cetins negros era o dia em que conseguia sobrepujar sua própria beleza. A pele branca de alabastro se chocava,mas não assustava com o negrume dos panos...mais parecia deliciada em contradizê-lo. As mechas onduladas dos cabelos ruivos caiam sobre a pele fazendo par com o cetim escuro. Era ruiva. Ser ruiva e pálida em ilha de morenices era ofensivo, mas ela não se ofendia por si mesma. Sua ruivisse era tão sua que ao longe se confundia com o preto dos panos que lhe cobriam dia ou outro e se fazia negro ante o rubro do dia anterior ou o branco do seguinte.
O azul dos olhos era sempre lacrimejante, não de choro. Eram lacrimosos porque não choravam e se faziam sorrir a todo tempo. O rosto firme e de traços desiguais e não esperados era belo em sua singularidade, de forte suavidade que sequer ela desconfiava. , ainda que branca como a lua, seus dentes conseguiam ser mais alvos ao sorrir. E Sempre sorriam.
Os olhos que lacrimejavam por não poder chorar não combinavam em nada com os lábios rosados, bem desenhados e cheios que nunca diziam muito ou quase nada. Muito raro ouvir sua voz. O que se sabia era o pouco contado a contragosto pelos que saiam de seu quarto. Seus clientes não gostavam de responder sobre ela. Fingiam não ouvir. Somente dona Carlota ouvira aquela voz fora das 4 paredes do quarto do puteiro. Ela e padre Zaqueu, e ambos concordavam com o coro dos clientes assíduos da alcova de Felícia: era a voz mais perfeita mesmo em desafino ou sussurros. Dona Carlota bem pouco lembrava das notas dessa voz, pois só ouvira: “Posso trabalhar com a senhora?” há cerca de 5 anos quando aquela menina chegara sem nada mais que um colar de pérolas, um livro cujo nome não lembrava – mas que tinha um bobo da corte na capa –, meia dúzia de peças de roupa rosadas e floridas.Lembra, dona Carlota, de ter pensado que somente poderia aproveitar aquela criança para lavar pratos e bem longe dos homens brutos e animais da carne humana.
Mas Felícia se vestiu de negro naquela mesma noite, colocou suas pérolas aninhadas entre os pálidos seios e sorriu dizendo que poderia mandar o primeiro senhor que a quisesse. Não ouviu mais nada desde então. E nem lhe interessava ouvir, apesar de ser tão curiosa quanto todos sobre aquela jovem estranha. Contentava-se em receber a grande soma de dinheiro diária dos incontáveis homens que, de hora em hora, se revezavam no quarto de Felícia. Dona Carlota sabia que manter as outras “irmãzinhas” era desnecessário, pois já enricara com as filas de sempre às portas de Felícia. Mas sempre havia um ou outro que preferia a obviedade que se sabia na cama das outras “irmãzinhas”. Todas odiavam Felícia. Ela lhes roubara todos os clientes e nem era tão bonita. Tinha algo que os trazia pra si, mas não era tão bonita. Era bela, mas não bonita disse a menina modelo famosa na cidade e que já desfilara duas vezes na cidade de São Paulo. Ela era experiente nessas coisas e dizia: que os peitos, as coxas e os quadris não combinavam com ser bonita. Dizia que Felícia era fornida demais. Não servia de modelo como ela e, portanto, não era bonita. Todas as mulheres concordavam. Felícia ouvia quando falavam essas coisas no caminho do bordel à igreja, mas só sorria. Sempre sorria. Sorria e corava. Como uma puta podia corar? Absurdo isso! Mas Felícia corava. Agarrava seu livro – não era a Bíblia... Era o livro com o bobo da corte -, apertava suas pérolas, sempre elas e apressava o passo corada. Felícia corava.
O padre Zaqueu certa vez ousara perguntar com toda delicadeza:
- O que vistes procurar aqui Felícia?
A menina das pérolas apertou seu bobo da corte junto ao peito e respondeu com olhos marejados que não choram:
- Não vim procurar. Vim trazer. E vim esperar me buscarem. Ele Virá. - e beijou o bobo da corte sem cores do livro batido do qual jamais se separava. Sempre andavam os três juntos: Felícia, seu bobo da corte e suas pérolas. O padre se perguntava intimamente, assim como dona Carlota, se ela largava o livro na hora do ofício, ao menos. Devia largar.O que faria uma puta com um livro nas mãos na hora do laboro? Dona Carlota não imaginava o que se dava naquele quarto para Felícia ser tão prezada pelos clientes, mas certamente nenhum jamais reclamara... Ela devia largar o livro sim. Dona Carlota não gostava de suas putinhas,mas as preferia em vez de Felícia. Ela lhe dava lucro incrível. Todo homem a queria e, geralmente, voltavam todos os dias para vê-la. Mas a profundeza e estranheza dela davam medo em dona Carlota..preferia suas putas sabidas que faziam barulho, reclamavam da comissão e do mau cheiro dos clientes.
Felícia nunca reclamava de nada. Nem da comida, nem dos homens porque todos os seus iam sempre asseados e perfumados, cheios de água de colônia. Felícia custava mais caro que qualquer puta da casa, mas eles não mediam capital e ainda lhe traziam presentes que Felícia sempre doava às “irmãzinhas” ou à quermesse do padre. “Só preciso de minhas pérolas.” Do muito dinheiro que todos os dias ganhava, retirava – quando muito – 10% para si e entregava o resto a uma saltitante dona Carlota.
Era 12 de junho, uma noite fria de lua nova, quando dona Carlota subiu para verificar o porquê dos resmungos masculinos. O Relógio já contava 7 da noite e a porta de Felícia ainda não abrira uma única vez informaram-lhe os clientes, mais preocupados que irritados. Nenhum jamais se atreveria a adentrar no quarto dela sem que ela lhes abrisse a porta. Dona Carlota foi quem o fez. Segundos depois, o recinto estava repleto por dezenas de homens que se acotovelavam, mudos, pasmos e que disfarçavam olhos vermelhos.
De uma das vigas de madeira do telhado pendia Felícia. A grossa corda que rodeava seu pescoço em nada combinava com a delicadeza de sua tez... Nem os olhos injetados e estatelados que perdiam o azul para o tom sanguinolento. Ela se vestira para aquilo. Nos pés sapatos de salto e bicos finos de cor preta, pelas pernas alvas subiam meias 7/8 negras que terminavam em renda nas coxas e, ali, se juntavam ligas. O busto de marfim era sustentado, também por renda negra do soutien que escolhera em par com a calcinha comportada. Escorrendo entre os seios, como sempre, o colar de pérolas agarrado por mãos rígidas e gélidas no ponto em que havia o nó. O robe negro de cetim caíra ao chão junto ao livro..junto ao bobo da corte tão sempre cuidado,mas agora caído no chão, amassado por apertos de mãos agozinantes por ar.
Dona Carlota aos gritos perguntou qual dos clientes teria tido coragem de fazer tal absurdo com a menina e o porquê.Todos se entreolharam sem entender,mas só um teve coragem de dizer o que nunca antes ninguém dissera: - Dona Carlota, a senhora nos “adescurpe” ,mas ninguém nunca que iria encostar nem para carinho na menina Felícia.
Sem entender e sem acreditar Carlota berrou: - Como que ninguém tocaria numa puta, oras faz o favor, seu Josué!
O coro de revolta foi geral. Felícia não era puta, diziam todos e dona Carlota que se benzesse ao falar o nome da menina. Ninguém nunca, jamais a tocara sequer nas mãos.
- Como? Mas, então.. Como? O quê???? A cafetina não compreendia como aquilo podia ser. Fazia anos aquele quarto era frequentado por dezenas de homens diariamente..como? Não entendia.
Olhou os homens perfumados e esmeradamente arrumados que vieram ver Felícia naquela noite. Todos choravam baixinho olhando o corpo suicida pendido do teto. Cada um trazia nas mãos uma flor, bombons ou um outro mimo qualquer. Era 12 de junho e a menina Felícia deixava a vida sem nenhum dos presentes que imaginava em sonhos cor de rosa, sem as flores que ansiara, sem o entrelaçar de mãos que sonhara. Morrera Virgem à espera de quem nunca veio. Felícia a única puta virgem já sabida...à espera de seu Bobo da corte, com 10% de seu dinheiro religiosamente gastos em presentes que nunca chegariam a quem nunca veio buscar-lhe. Nenhum dos homens que entrara naquele quarto tantas vezes jamais revelou o que lá acontecia. Somente afirmavam com uma verdade inquestionável: ninguém NUNCA tocara na menina Felícia, sequer em um aperto de mão. Só diziam que Felícia os fizera felizes e marejavam os olhos pela puta virgem que se fora esperando, agarrada às suas pérolas.
Mirian M. Brugnara
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